A GRANDE VIAGEM

 

Em 1946, morava no Rio de Janeiro, e desde menino não via o meu pai. Descobrimos (eu e meu irmão), o endereço do mesmo, através do Departamento de Geografia Terra e Colonização, do Estado do Paraná, donde o mesmo era funcionário. Meu genitor Messias Francellino de Medeiros, era capataz dos homens que construíam a estrada de rodagem Brasil-Paraguai, naquela época, no Território do Iguaçu. Minha mãe estava separada do mesmo desde 1927 e não concordava com a aproximação de pai e filhos. Através de cartas, marcamos um encontro na cidade de Cornélio Procópio - PR, aproveitando minhas férias de trabalho. Donana, minha mãe, estava irredutível. Não queria este encontro, provocando um grande atraso no meu embarque. Uma vez dada a liberação materna, pela Central do Brasil , dirigi-me à capital de São Paulo, na época 12 hs. de viagem. Lá chegando, na estação de Sorocabana, tomei o rápido Ouro Verde, até à cidade de Ourinhos-SP (divisa com o Paraná). Passei para a ferrovia Paraná-Sta.Catarina até Cornélio Procópio, onde morava a 2a. família do meu pai. As ruas da cidade não tinham indicações bem definidas. Cidade sem calçamento e casas todas de madeira. Muito cansado da viagem e com uma pequena mala em baixo do braço, continuei a percorrer as ruas até que avistei um grupo de meninas brincando de roda. Aproximei-me das mesmas perguntando pelo endereço mas, entre as meninas, uma olhou pra mim com grande espanto e perguntou-me: "Você é o Waldemar?". Ao confirmar ela com muito alegria falou-me: "Eu sou a Esmeraldina, sua irmã!" Pegou-me pelas mãos e fomos alegremente para a sua casa como dois namorados. No trajeto,, confidenciou-me: "O papai esperou muito por você mas vendo que não vinha, foi embora para o território do Iguaçu, onde está trabalhando. Ao chegarmos na casa, sua mãe, Dna. Bertolina, minha madrasta, estava passando roupas e recebeu-me com um grande abraço falando: "O Messias deixou aqui este mapa com o nome da pessoa que irá ajudá-lo com cavalo, até onde ele está. Você dorme aqui e, amanha cedo, continua a sua viagem". No dia seguinte, bem cedo, despedi-me da família e fui para a estação rodoviária. . Ambas ficaram no portão, dando-me o adeus. Desembarquei em Maringá-PR, de acordo com o roteiro do meu pai. Daquela cidade para frente, não tinha mais ônibus e muito menos estrada de ferro. Ali era o limite da civilização. Meu pai tinha escrito no papel: Daqui para frente, só carona de caminhão. O próprio gerente do hotel, onde me hospedei, encarregou-se de me ajudar. Subi na carroçaria de um caminhão que estava lotado com sacos de arroz, milho e feijão. Por cima da sacaria, um grupo grande de caroneiros, constituído de um padre, várias senhoras, uma amamentando um neném e alguns homens jovens e velhos. Tinha chovido muito durante a noite, e nas quatro rodas traseiras do veículo, enormes correntes em forma de rosário, abraçavam os pneus. E lá fomos nós, escorregando pelas estradas barrentas. Depois de muitas horas de sacrifício, paramos atrás de uma enorme fila que não andava. Saí de cima da sacaria e fui observar, in loco, qual o empecilho rodoviário. Constatei o acidente.. O rio Ivaí, muito largo, tinha engolido a balsa e um caminhão com toda a mercadoria. Os viajantes se salvaram nadando. Felizmente, ninguém morreu. Todos reunidos, procuravam, desesperadamente, construir outra embarcação. Eu, como caroneiro, não poderia ficar de braços cruzados: Mãos à obra! A nova chata, feita com tambores de petróleo como flutuantes, ligados com vigas de madeira. Uma vez pronta, as dezenas de veículos atravessaram o rio um a um. Qdo. chegou nossa vez, para maior segurança, tivemos que descarregar o caminhão e atravessá-lo vazio até a outra margem. Uma vez recarregado, continuamos e, em Peabiru-PR, o motorista gritou: "Waldemar, pode saltar que este é o seu ponto". Agradeci e a cidade era constituída de apenas uma rua. Casas de madeira e todas fechadas. Deveria ser mais ou menos, 16 horas e os habitantes, naquela altura, ainda estavam nas lavouras. Passados alguns minutos, surge uma enorme carroça, tipo diligência dos filmes do oeste americano, Fiz sinal e ela parou. Disse que meu destino era Araruna. Pode subir, autorizou o carroceiro. O veículo era todo coberto de lona, teto arredondado, com muitos cavalos fazendo a tração. No interior vários passageiros: senhoras, crianças. Os homens, quase todos fumavam cigarro de palha. Os cavalos corriam bastante para vencer as longas trilhas das florestas do Iguaçu. Como estava muito calor, o ar que atravessava a diligência, canalizado pelo formato da lona, dava aos passageiros, uma brisa encantadora e relaxante. Saltei em Araruna (aldeia com alguns índios) e ali, descobri o guarda florestal de nome João Peixe que já me esperava. Ele para mim: "O sr. Messias, seu pai, passou por aqui ontem muito chateado por causa do desencontro. Vou levá-lo à minha casa, já está anoitecendo e amanhã você continua a viagem". Ali mesmo arranjou um cavalo emprestado e entramos por uma trilha da floresta, em dois cavalos. Depois de uma hora e meia, mais ou menos, pela floresta escura, chegamos a sua residência, uma casa de pau-a-pique coberta de sapé. Todos dormiam. Sua esposa levantou-se para dar-nos alimento. No dia seguinte, às 5,3O hs. depois de um bom café sem leite, a esposa do João Peixe entregou-lhe uma marmita que foi amarrada no selim, no dorso do cavalo. Entregou-me, também, um revólver reluzente e falou-me: "Daqui até à Tuneira, são doze horas de viagem. Leva esta arma, apenas para a sua tranqüilidade. Temos muita onça na floresta mas, devido a fartura de caça, ela não ataca o homem. Pode viajar descansado e boa viagem!" Foi-me reservado o melhor animal do Serviço Florestal do Estado. Mal subi no animal e ele disparou para o rumo certo. Percorrendo as trilhas no meio da floresta, esticava o pescoço para o lado e abocanhava folhas verdes para a sua alimentação, sem diminuir o trote. Pela trilha, comecei a encontrar veados mortos, com as vísceras à vista, e em volta dos mesmos, sinais de pegadas felinas. Já fiquei com medo. Não iria jamais parar para abrir a marmita. De cima do animal em movimento, procurei alimentar-me. O medo era tanto, que o galope estava me ajudando na deglutição do arroz, feijão com frango. O calor era intenso, eu suava muito e o animal também. De repente, o cavalo sai da trilha e se embrenha pela floresta. Eu puxava desesperadamente a rédea mas não era obedecido. Baixava a cabeça para me livrar da trança de cipós e surge em nossa frente (minha e do cavalo), um lindo rio de águas cristalinas. Ali a minha viatura de viagem deglutiu uma grande quantidade do precioso líquido. Fiquei com "água na boca" e fiz o mesmo, descendo do animal é claro! Mas, a minha idéia fixa..., era onça! Deitei-me junto de suas patas, e bebi o precioso líquido com muita dificuldade. devido ao desnível do rio com o meu corpo. Então, pela primeira vez na minha vida, tive que bancar uma bomba aspirante-calcante. Já em pé e satisfeito mas sempre com medo, o cavalo deu um enorme espirro (soprando com as ventas considerável quantidade de ar). Meu susto foi tão forte que me atirei no rio, pensando tratar-se de uma onça. O animal ficou me observando, talvez, percebendo que se tratava de um marinheiro de primeiríssima viagem. Antes de voltar ao selim, agora molhado,, senti que minhas nádegas ardiam demais, resolvi pesquisar o que estava acontecendo: Minha cueca toda manchada de sangue! O selim estava me atritando todos os tecidos do assento e, naquele momento, só havia um remédio:: era continuar a viagem sobre o couro duro e desconfortável. Ou vai ou racha! Às 17,30 hs., mais ou menos, avistei, no horizonte da trilha (terreno todo plano), uma casinha de sapé, saindo fumaça pela chaminé. Minha alegria foi grande, depois de 11,30 hs. de viagem. Em torno da tal casa, duas adolescentes descalças, de vestidos longos e os cabelos em desalinho, corriam uma atrás da outra brincando. Quando me viram, sumiram no interior da casa e o pai veio atender-me. Pediu-me para apear. Com dificuldade, saí de cima do animal e entrei na residência, andando de pernas abertas. O cavalo, molhado de suor, deitou-se onde estava. A casa não tinha móveis na sala. Sentei-me meio de lado, com dificuldade, sobre uns sacos de milho. O dono da casa falou-me: "O seu pai passou por aqui ontem preocupado pelo desencontro". Confirmei que ouvi isto durante toda viagem. A dona da casa trouxe numa bandeja feita de tábua, duas canequinhas de ágata com um café muito ralo. Não olhava pra mim e nem dizia nada. Só obedecia ordens do marido. Ele para mim: "Mais meia hora de cavalo, você vai estar na Tuneira". Despedi-me agradecendo a acolhida e o café. Cheguei ao animal deitado, puxava a rédea mas, sem sucesso. O tal senhor, percebendo a minha inexperiência, riu e falou: "Deixa comigo!". Segurou a rédea com raiva e chutou com toda a violência a barriga do animal. Fiquei pasmo pelo tratamento descortês com um eqüino tão cansado. Como sofrem esses animais no interior do Brasil! O sal é substituído pela terra. Verde tem bastante mas folhas de palmitos. No meio da selva, o capim não nasce. Cheguei na aldeia Tuneira, pouco depois das dezoito horas. (Doze horas de viagem!). Continuei de pernas abertas e os funcionários do Serviço trataram-me com uma pomada secante. Fui informado que para chegar onde meu pai estava, teria que viajar mais doze horas! Meu estado físico só me permitia andar a pé e de pernas abertas. Um engenheiro chamou um peão e ordenou: "De manhã bem cedo, pegue um cavalo e vá avisar o seu Messias que o filho dele está aqui sem condições de continuar a viagem". Após dois dias, quando jantávamos, avisaram-me: "O seu pai está chegando". Larguei o prato e saí correndo ao seu encontro. Ele desceu do cavalo segurando um guarda-chuva, deixou-o cair e abriu os braços para receber-me calorosamente com os olhos cheios de lágrimas! Primeiras palavras: "Puxa vida, o senhor teve coragem de chegar aqui sozinho!?". E eu: Papai, não me trate de senhor. Já estou ficando careca e esta palavra aumenta a minha calvície. Ele sorrindo respondeu-me: "O senhor é engraçado e fala igualzinho o meu pai!". Resumindo, ficamos ali uns cinco dias juntos e sempre tratando do meu assento. Na barraca, dormíamos numa cama de lona que eles chamavam de cama de vento. De noite, o velho revia os retratos da dna. Ana que eu tinha levado. E eu mexia com o velho: NAMORANDO HEIN! Respondia-me com um sorriso. Durante minha permanência na Tuneira, fui obrigado a recorrer à selva para as minhas necessidades fisiológicas. Um funcionário orientou-me a passar o óleo For Fly antes de entrar no mato. Achei um absurdo e não passei. O dito ficou me observando. Entrei na selva, fiquei nu da cintura pra baixo e de cócoras, comecei o trabalho excretor. Imediatamente fui atacado por um enxame de insetos. Desesperado, saí correndo com as calças na mão e o funcionário rindo entregou-me o vidro de óleo. A partir daí, tudo deu certo. No dia do meu regresso, abracei o papai fortemente. Ele com os olhos lacrimejando falou-me: "Deus que o abençoe e boa viagem!". Com o assento em condições, subi no animal, agora, com a mesma destreza de um bom vaqueiro, com destino à casa do João Peixe. Papai fez o mesmo, no sentido contrário, regressando para além de Cruzeiro do Oeste. Na casa do João, fiquei dois dias para descansar. Naquela região inóspita, a alimentacão diária era constituída de arroz, feijão, palmito, queixada (carne de porco), tatu, lagarto e, principalmente os índios, comiam macacos. Pelas mesmas vias voltei. Em Londrina tomei um trem até Ourinhos, onde fiquei mais dois dias, na casa do meu colega e amigo, o polonês Roman José Oszpar. Ele e a família ficaram admirados pela odisséia que eu jamais pretendia repetir. Chegando ao Rio de Janeiro, fui obrigado a procurar o Serviço de Saúde para tratar de uma infecção intestinal, devido à água do rio que usei para matar a sede. Anos depois, meu pai aposentou e continuou a morar com a família na cidade de Cornélio Procópio. Quando eu trabalhava no consultório do Jardim Glória, tive um cliente pastor adventista, de nome Manoel Guilhem, que foi transferido para a igreja de Cornélio Procópio. A meu pedido, procurou o meu velho. Muito astuto, percebendo que o mesmo era indiferente à religiao, transformou-o num homem crente com a dna. Bertolina. Quando meu pai faleceu, conformei-me por ter descansado em paz professando uma religião. Minha mãe, a dna. Anna, sempre foi espírita mas eu, com minha esposa, sempre fomos católicos praticantes, graças a Deus e amém! Para encerrar: No dia 14-04-1982, eu, Jahyra, Dinha e Tatico, voltávamos de Foz do Iguaçu, fazendo turismo com nosso carro e pegamos o mesmo caminho de meu sofrimento, agora, é claro, todo asfaltado. Passamos por Peabiru-PR e paramos para lanchar em Ivailândia, justamente no local onde o rio Ivaí engoliu uma balsa com caminhão cheio de mercadoria em 1946. Uma bonita ponte de concreto armado lá estava. Falei com o dono da lanchonete: Desconfio que este é o lugar onde o rio devorou uma balsa carregada. Sorriu e me confidenciou: "Até hoje o caminhão e a balsa estão dormindo no fundo do leito. Ninguém conseguiu tirar". Imediatamente andei até à ponte para relembrar os maus pedaços daquela viagem. Os meus passageiros foram atrás de mim e, euforicamente, relatei sobre a construção da barca com tambores vazios, vigas de madeira e com a minha participação! Minha grande vitória estava ali: O rio Ivaí, apesar de largo e perigoso, ainda me deixou passar para ver o meu pai pela última vez. Um dia, se Deus quiser, encontrar-nos-emos novamente. Waldemar Medeiros. F I M

 

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